“Venho de uma caminhada longa nesse enredo de abrir mão do controle, confiar no outro e me sentir merecedora de ser cuidada.”
Nas 38 semanas as noites foram ficando ainda mais agitadas. Algumas contrações e cólicas doloridas vinham me despertando na madrugada, eu levantava pra fazer xixi e pouco depois a sensação aliviava e eu dormia novamente. A partir de 39+5 as contrações e cólicas ficaram mais frequentes na madrugada, cheguei a acordar de 5 a 7 vezes durante a noite.
Apesar de tantas interrupções no sono, sempre conseguia voltar a dormir e ao amanhecer do dia eu estava disposta, o mantra era “descanse o máximo possível” porque a pior coisa que tem é a mulher entrar em um trabalho de parto estando cansada.
A madrugada de segunda-feira, com 40+1, se desenrolou com as mesmas características das anteriores, até que às 5:00 eu acordei com uma contração muito mais forte, longa e que irradiava por toda a pelve. Respirei fundo, olhei a hora no relógio só pra me situar no tempo (eu não estava olhando a hora quando acordava, olhei nessa vez pela diferença da contração). Poucos minutos depois veio outra tão intensa quanto a anterior, segui deitada observando e então veio outra. Decidi levantar, tentar fazer xixi, porque as vezes a bexiga cheia fica estimulando contrações.
Ao me limpar após o xixi vi um muco sanguinolento no papel, pensei “é, agora ficou diferente, a coisa pode estar começando”
As contrações seguiram vindo em intervalos de 4 – 6 minutos em uma intensidade considerável, tanto em dor quanto em tônus uterino.
Liguei pra Simone pra trocar ideia, ir ou não ir para a CPN agora?
Obviamente não estava em trabalho de parto ativo, seria um pródomo mais intenso, mas moro longe da CPN e da minha casa até o plano piloto tem um engarrafamento absurdo que dura das 6:00 às 8:30, então fiquei naquele dilema:
1) ir cedo pra CPN, chegar lá e ser só um alarme falso;
2) esperar mais um pouco, o bicho pegar pra valer e eu ter que sair com o trânsito pesado (considerando que a evolução do segundo parto de uma mulher costuma ser mais rápido).
Acabei decidindo por ir, na vibe do “sem compromisso, se não for nada eu volto pra casa”. Falei pra Simone levar o computador dela pra ficar estudando/trabalhando lá da CPN porque eu não queria me sentir tensa com a sensação de estar “empacando” o dia de ninguém. Pensamentos de que eu poderia estar incomodando iria com certeza me atrapalhar a relaxar pra deixar o parto vim.
Venho de uma caminhada longa nesse enredo de abrir mão do controle, confiar no outro e me sentir merecedora de ser cuidada.
Cheguei na CPN primeiro que a Simone, fui buscar me ambientar como parturiente naquele espaço que eu já era ambientada como parteira.
As contrações seguiam em ritmo totalmente aleatórios, mas quando vinham eram com aquela mesma intensidade que me acordou, fiz um auto toque e vi que estava apenas com 2 cm de dilatação, colo firme, ainda grossinho. Renata estava atendendo consultório e conseguiu ir me ver efazer uma sessão de acupuntura por volta das 9:30.
Me movimentei, fiz alguns exercícios do Spinning Babies, tomei banho, mas manhã acabou se desenrolando sem grandes alterações no padrão, estava considerando voltar para casa, mas antes resolvi caminhar na rua, visitar o templo da LBV pra ver se vinha alguma inspiração mais certa do que fazer.
Caminhei em oração o caracol do salão principal do templo, mentalizando tudo aquilo que desejava deixar ir da minha vida e vibrando e agradecendo por todas as bençãos recebidas.
Quando estávamos nos dirigindo para a saída começou a tocar a oração de São Francisco de Assis, que especial! Recebemos a “coincidência” como um sinal da presença Divina a nos guiar.
Durante todo o tempo do passeio as contrações espaçaram e reduziram a intensidade, então decidimos que voltaríamos para casa, porém foi só tomar essa decisão que novamente as contrações voltaram a intensificar e ficar mais frequentes apesar de ainda irregulares. Estava parecendo “pegadinha do malandro”. Em conversa com a Simone e a Iara reconsideramos continuar aguardando lá na CPN. Iara foi embora pra almoçar em casa, Simone ficou, Renata seguia atendendo consultório e Mykaell foi buscar o almoço para nós em um restaurante que gosto.
A tarde foi entrando, tentamos descansar, Mykaell conseguiu dormir um pouco, eu não. Estava me sentido tranquila, mas tinha um plano de fundo de medo que eu nem sabia dizer exatamente do quê… eu queria que o trabalho de parto engrenasse pra valer, mas quando parecia que o ritmo ia esquentar, me faltava coragem.
Foi nessa espera que recebemos a segunda abençoada “coincidência”, da janela do quarto vimos um arco-íris que se formou naquela segunda-feira de sol e chuva. Então era um arco-íris lá no céu anunciando a chegada do nosso arco-íris aqui em nossas vidas.
Às 15:30 fui para o chuveiro, fiz um novo toque, 5 cm. Ok, alguma evolução mesmo nesse ritmo capenga. Uma hora a coisa ia pegar. As contrações eram fortes, bem intensas, eu cheguei a comentar com a Simone “só falta elas virem com mais frequência”.
A gente ficou boa parte do tempo conversando, se distraindo, rindo, lembro de um momento que a Renata brincou falando “quero ver a hora que essa graça toda vai passar…”
Às 18:00 enquanto eu me pendurava no tecido durante uma contração, a bolsa rompeu. Levei um susto!!! Senti a pressão aumentando no canal vaginal até aquele “som interno” de “ploft”. Pensei, “agora que a bolsa rompeu, a coisa vai pegar pra valer e o bebê vai descer” e junto desse pensamento o medo veio pra superfície.
Resultado da bolsa rota? Nenhuma mudança imediata no padrão das contrações. Bateu uma certa frustração misturada com alívio, era um tal de vai não vai, de quero parir mas to com medo.
Decidi entrar na banheira, ficar um pouco ali em silêncio sozinha com o Mykaell. Precisava internalizar, entender o que é que estava acontecendo dentro de mim.
Acocorada dentro da banheira resolvi fazer outro toque, agora com mais calma, de olhos fechados, quis sentir o colo, passar o dedo em toda a circunferência dele, me conectar. O que vi/senti? Um colo super tenso, tinha um anel firme na circunferência interna, ali nos mesmos 5-6 cm de antes, e enquanto eu passava o dedo eu senti no coração a rigidez da represa de tantas emoções guardadas… “Não acredito”, foi o que pensei.
Dizem que a mulher deve buscar parir suas dores antes do parto do bebê, e eu achei que tinha conseguido fazer isso ao longo da gestação… sim, claro que consegui fazer um grande e belo trabalho na jornada do autoconhecimento, mas percebi que havia algo a mais que precisava ser limpo do meu sistema.
Passei a gravidez com muito medo de viver uma nova perda gestacional e que não aliviou mesmo com o avançar fisiológico da gestação pelo medo que todo esse contexto da pandemia levantou. Por trabalhar diretamente na assistência obstétrica estive em contato com inúmeras notícias de desfechos negativos em mulheres grávidas com Covid, e como medida de autopreservação busquei isolar minhas emoções de “mulher grávida” interpretando tudo a partir do discernimento do papel de “enfermeira”. Mas é aquela coisa, mentira tem perna curta, e uma
hora os sentimentos guardados na gaveta iam aparecer. Eis que apareceram alí, no dia do parto.
Tirei o dedo da vagina e tentei respirar o medo. Medo de morrer, medo de perder o bebê. Não ia dar tempo de processar tantos conteúdos emocionais pra então viver um parto “pleno, suave e belo”, porque sim, eu também idealizei um pouco o que esperava desse segundo parto.
Então era esse o convite final que a vida me oferecia, e eu decidi sinceramente me entregar e aceitar a história que viria dali em diante.
As contrações seguiam irregulares e espaçadas, mas começaram a vir ainda mais intensas, ainda mais dolorosas, uma sensação de que o colo estava queimando. Pedi pro Mykaell ligar pra minha mãe e avisar que ela e o Bernardo já poderiam ir para a CPN.
Às 19:30 Simone me ofereceu tomar uma homeopatia que ajudaria a trabalhar o colo. Eu sabia que se eu aceitasse o trabalho de parto iria vim de verdade… mais uma vez o misto de sentimentos de “quero, não-quero”.
Mas como dizem: “se está com medo, vai com medo mesmo”.
Aceitei a homeopatia. Às 19:35 minha mãe e o Bernardo chegaram, recebi um beijo e abraço deles. Pronto, minha ancora estava completa.
Às 20:00 segunda dose da homeopatia. Partolândia chegou pra valer, contrações finalmente ritmaram, a intensidade era forte e a DOR imensa!! Eu oralizava, pedia a compressa quente nas minhas costas, pedia uma mão pra segurar, pedia e pedia… e quando eu me dava conta do tanto que eu estava requisitando ajuda das parteiras eu me sentia constrangida de estar “dando trabalho”, eu pensava “na próxima contração eu vou respirar fundo e ficar mais tranquila”.
Não dava! Era impossível atravessar sozinha! O que voluntariamente eu não consegui me entregar por inteiro pra receber o cuidado do outro, a dor me retirou arbitrariamente a expectativa de qualquer autocontrole.
Às 20:15 pedi pra ir pro chuveiro com o Mykaell, a água aliviava a dor, mas eu acabei ficando muito zonza, mole, não dava pra ficar lá dentro por muito tempo. Quando sai do banheiro fui para a cama, fiquei em quatro apoios, bateu um cansaço forte, eu queria muito deitar, o pensamento estava agitado, era como se eu estivesse em uma obra barulhenta, a Renata falou “então deita um pouco”, eu deitei. Tão simples… mas em meio ai turbilhão interno parece que eu não estava conseguindo encontrar o caminho pra simplesmente deitar.
Às 21:00 terceira dose da homeopatia. A dor da contração estava in-su-por-tá-vel! Eu sentia como se a dor, o medo, a frustração e uma cambada de coisas estivessem saindo junto do suor por cada poro do meu corpo. Em um dado momento, por duas contrações consecutivas eu tive a visão do meu colo do útero, era um círculo no fundo de um túnel que se abria com a força da contração.
Foi muito! A maior intensidade física e emocional que eu já experimentei na vida! Foi como se não restasse mais nada de mim mesma e eu estivesse prestes a me fundir com o “todo” ou com o “nada”, sei lá. Do fundo da minha alma eu roguei “Maria Mãe Santíssima, me sustenta”.
Logo na contração seguinte eu senti o Francisco descendo. Assustei! Como assim? Será? Pedi que rasgassem a calcinha absorvente que estava usando, toquei o períneo e lá estava a cabecinha
dele já coroando. Outra contração veio, segurei a cabecinha dele com a ponta dos meus dedos, a dor do expulsivo era demais naquela posição deitada. “Essa posição não tá legal”. A contração passou e eu me levantei ficando ajoelhada de quatro apoios, nova contração e Francisco começou a nascer sem que eu pudesse controlar “DEVAGAR FRANCISCO, DE-VA-GAR, DEVAGAR!!!”.
A cabeça saiu, a contração havia passado, mas nem a pau que eu ia ficar esperando uma nova contração pra ele terminar de nascer!! Fiz uma pressão abdominal e eu mesmo fiz o desprendimento do ombrinho. Pronto, ele nasceu!! Foi recebido pelas mãos do pai. Ele chorou. Ele estava vivo, euestava viva. Que alívio. Tudo passou. Tudo acabou. Era o que eu conseguia assimilar naquele momento. “Amor, acolhe ele aí porque eu tô processando aqui” Renata me deu um abraço breve e eu falei “não, vem cá, me abraça mais”, era tudo o que eu precisava naquele momento.
Me recompus em poucos minutos, “pronto, me dê ele aqui”. Eu ainda em quatro apoios, Mykaell me passou o Francisco pelo meio das minhas pernas, eu o deixei deitadinho na cama e fiquei
por algum tempo apenas olhando-o, reconhecendo-o. Pensei “Meu Deus, eu nem acredito! Ele está aqui”
Senti uma leveza genuína. Depois de tanta intensidade, tanta dor, eu me sentia INTEIRA! É como se eu tivesse parido a mim mesma, verdadeiramente RENASCI!!
GRATIDÃO!
Gratidão por todas as sensações intensas que esse parto me trouxe!
Foram elas que me curaram!
Gratidão Simone, Renata e Iara por terem me acolhido, me cuidado, com tanto carinho no dia que ficará para sempre gravado em minha alma.
Gratidão a equipe Luz de Candeeiro; Alyne, Ana Cyntia, Barbara, Giovana, Juliano, Priscila, Rafaela, Sofia; por todo zelo comigo ao longo da gestação, cada encontro com cada uma e um de vocês acrescentou uma peça importante no processo de amadurecimento que eu precisava viver para ter condições de receber esse parto como foi.
Vida longa à LUZ do amado Candeeiro!