Parto Humanizado?

por | dez 26, 2022 | Parto humanizado

Segundo Simone Diniz, grande pesquisadora brasileira, o termo humanizar é utilizado no contexto da assistência ao parto desde o início do século 20. Nessa época, grandes obstetras do cenário nacional e internacional associavam o termo ao uso de fármacos para manejo da dor (inclusive sedação e consequente amnésia), condução do parto com ocitocina sintética e aplicação de fórceps, especialmente em primigestas. É desse momento histórico também os estudos matemáticos da pelve feminina, que tinha seus diâmetros e ângulos medidos e explorados na tentativa de predizer o sucesso do parto normal. 

Vigorava uma lógica de tutela sobre a mulher, seu corpo e seus processos, de modo que a parturiente era vista como incapaz ou sofredora e, seu processo de parir, como defeituoso ou perigoso (partindo do princípio de que sua fisiologia era essencialmente falha e que alguma intervenção seria quase que obrigatória para corrigir seu curso). Assim, a humanização era entendida a partir do que profissionais de saúde, médicos obstetras (homens na maioria), deveriam ou não fazer para resolver esses fatores considerados como problemas. Aqui, a suposta superioridade cirúrgica e intervencionista se sobrepôs a muitos saberes acumulados tradicionalmente sobre o “obstare”, o “estar ao lado” de uma mulher em trabalho,  e o ofício de partejar.

Tais condutas foram sugeridas com base em experiências e opiniões de especialistas e passaram a ser largamente empregadas numa época em que não havia ainda a chamada “medicina baseada em evidências” (MBE). Em outras palavras: a incorporação dessas e de outras práticas à assistência ao parto e nascimento ocorreu sem a devida validação científica de suas indicações e de seus benefícios. Nem mesmo a migração da assistência para o hospital ocorreu com base em comprovação de benefício em relação ao domicílio ou a casas de parto.

E, apesar de boa parte desse modelo de assistência ter sido abandonada por causa das complicações e da alta mortalidade de mulheres e bebês, sua lógica, em certa medida, ainda permeia a assistência nos dias atuais. Com anestesias e operações mais modernas e seguras, tem-se uma linha de produção do parto, em centros cirúrgicos organizados em torno de cesarianas agendadas, submetendo esse evento fundante da vida – parto e nascimento – a ritmo outro que não o seu próprio, sobrecarregando-o de intervenções altamente tecnológicas, com a (falsa) promessa e o objetivo, muitas vezes, de ausência de dor. 

Na Europa, os movimentos que questionavam essa assistência intervencionista e buscavam nova definição para a humanização começaram a partir de 1950 e, nas décadas seguintes, movimentos feministas agregaram força e voz à demanda de mudanças. Janet Balaskas, autora do livro Parto Ativo, e Michel Odent, que descreveu uma nova fisiologia do parto, são nome expoentes desse movimento.

Em 1985, a Organização Mundial da Saúde (OMS) organizou com parceiros uma conferência sobre tecnologia apropriada no parto que ocorreu aqui no Brasil, em Fortaleza. É resultado dessa conferência a Carta de Fortaleza, texto que recomenda, entre outras coisas: a participação das mulheres na criação e na avaliação dos programas de assistência, a liberdade de posições no parto, a presença de acompanhantes, o fim dos enemas, raspagens de pelos e amniotomia de rotina, a abolição do uso também rotineiro da episiotomia e da indução do parto. É desse mesmo momento também a primeira recomendação da OMS de que as taxas de cesariana permaneçam em torno de 10% a 15%, pois não havia justificativas no conhecimento obstétrico da época para taxas maiores. 

No Brasil, novas experiências de assistência ao parto passam a ser realizadas a partir de 1970 em vários estados. Em 1993, é fundada a Rehuna – Rede pela Humanização do Parto e do Nascimento, com a redação da Carta de Campinas, documento que denuncia violências e condições inadequadas a que mulheres e crianças eram submetidas no momento do nascimento. De lá pra cá, houve muitos encontros e muitas produções em vários setores no sentido de melhorar o cenário obstétrico brasileiro e os termos humanizar, humanização, humanizado foram sendo cada vez mais empregados em diversos contextos, com particulares sentidos.

Para compreender melhor esses termos, cito definições escritas por Simone Diniz literalmente: 

A humanização aparece como a necessária redefinição das relações humanas na assistência, como revisão do projeto de cuidado, e mesmo da compreensão da condição humana e de direitos humanos.

As propostas de humanização do parto, no SUS como no setor privado, têm o mérito de criar novas possibilidades de imaginação e de exercício de direitos, de viver a maternidade, a sexualidade, a paternidade, a vida corporal. Enfim, de reinvenção do parto como experiência humana, onde antes só havia a escolha precária entre a cesárea como parto ideal e a vitimização do parto violento.

A autora também buscou e sistematizou os muitos sentidos atribuídos à humanização ou o que gosto de chamar de pilares que sustentam. Apresento a seguir de forma sintética: 

  • assistência baseada em evidências científicas e nos direitos humanos de mulheres e bebês;
  • ampliação do rol de profissionais capacitados para prestar assistência ao parto e nascimento (inclusão de enfermeiras obstetras e obstetrizes) e dos locais de parto, com legitimação de casas e salas de parto (finalizando a exclusividade médica e a obrigatoriedade de centros cirúrgicos);
  • participação da mulher nas decisões sobre sua saúde.

Ou seja: a humanização se estrutura em princípios éticos e científicos que objetivam aumentar a segurança e a satisfação da experiência de parto e nascimento, para as mulheres e para as crianças, certo?

Por que, então, ainda nos dias atuais, a humanização parece continuar à margem do modelo hegemônico? Por que as mulheres ainda tem que remar tanto contra a corrente para terem o seu “parto humanizado”? Veja a opinião de Marsden Wagner, em seu artigo “Fish can’t see water: the need to humanize birth”:

“Humanizar o parto significa compreender que a mulher que dá à luz é um ser humano e não uma máquina de fazer bebés. Retirar das mulheres a sua capacidade inata de fazer nascer um bebé ao inferiorizá-las e tratá-las como se elas fossem incapazes é uma tragédia para a sociedade. Por outro lado, respeitar a mulher como ser humano válido e garantir que a experiência de dar à luz é enriquecedora e poderosa, não é apenas um extra simpático. É absolutamente essencial porque, ao fortalecermos as mulheres, fortalecemos a sociedade. No entanto, não existe parto humanizado em muitos sítios atualmente. Porquê? Porque os peixes não conseguem ver a água em que nadam. Médicos, parteiras ou enfermeiras que apenas lidam com partos hospitalares, altamente interventivos e medicalizados não conseguem ver o impacto profundo que as suas intervenções têm nos nascimentos. Não fazem a mínima ideia do que é um parto sem todas aquelas intervenções, não fazem ideia do que é um parto não desumanizado.” [tradução livre]

Quando profissionais da obstetrícia passam a questionar tudo isso, a partir de abertura e disponibilidade sinceras para reinventar a si e sua prática, parece que o oceano inteiro é tingido de outra cor. Não é mais possível não ver a água e, além disso, torna-se premente a necessidade e a vontade de ampliar a visão e a consciência de mais, digamos assim, habitantes do oceano. Em outras palavras: só há uma atitude viável, que é transformar e atualizar a forma de cuidar das mulheres e bebês, desfrutar do quão gratificante é isso e encontrar formas de fazer isso se multiplicar.

Foto: Mari Cardoso

Chega o ponto em que talvez a gente até prefira não usar o termo “parto humanizado” – embora seja impossível não reconhecer a importância dessa palavra e as reflexões que ela provoca – e empregue apenas a palavra “parto”, sem adjetivo, pois todos os sentidos atribuídos à humanização deveriam ser a praxe, não a exceção.

Quer dizer, para aproveitar a oportunidade de uma boa citação, vale um adjetivo: parto “mamiferizado”. Segundo Michel Odent, essa deveria ser a nossa prioridade: “mamiferizar o parto”. ;o)

Veja:

“Por isso, devemos eliminar o que é especificamente humano, as crenças e os rituais do parto. Eliminar o que é especificamente humano significa que durante o processo do nascimento o neocórtex deve parar de funcionar. Ao mesmo tempo, temos que redescobrir, atender e satisfazer as necessidades universais que todos os mamíferos em trabalho de parto têm, que é se sentir seguro – se existe um predador em volta, a fêmea libera adrenalina para ter energia para lutar ou fugir, e vai adiar o parto até se sentir segura – e ter privacidade – todos as fêmeas de mamíferos têm estratégias para não se sentirem observadas quando dão à luz. Essas são as regras simples que devemos seguir.” (Michel Odent)

REFERÊNCIAS 

Diniz, Carmen Simone Grilo. Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos sentidos de um movimento. Ciência & Saúde Coletiva [online]. 2005, v. 10, n. 3 [Acessado 19 Agosto 2022], pp. 627-637. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S1413-81232005000300019>. Epub 11 Jun 2007. ISSN 1678-4561. https://doi.org/10.1590/S1413-81232005000300019.

Wagner M. Fish can’t see water: the need to humanize birth. Int J Gynaecol Obstet. 2001 Nov;75 Suppl 1:S25-37. PMID: 11742640.

Odent, Michel. A prioridade hoje é mamiferizar o parto. Disponível em: https://www.institutomichelodent.com.br/blog-instituto-michel-odent/michelodentmamiferizarparto#:~:text=Isto%20%C3%A9%20algo%20que%20precisamos,que%20em%20qualquer%20outra%20situa%C3%A7%C3%A3o. Acesso em 21/08/2022.

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