Relato de parto da Renata, nascimento da Letícia

por | jul 14, 2022 | Relatos de Parto

O Relato de (quase) tudo

♡ O desejo

“Eu sabia que queria ser mãe de novo. Acho que desde que decidimos ser mãe e pai. Isso é coisa que escolhemos guardar nos arquivos protegidos do coração (protegidos de opiniões, olhares, expectativas outras que não as nossas próprias), preservando as liberdades de nãos, de depois, de mudamos de ideia. Exercício também de abrir mão do controle, pois a existência do desejo não te dá previsões ou garantias. Aliás, escolher ser mãe/pai, gerar, gestar, dar à luz e tudo que vem depois é a maior dose de aqui-agora e o maior intensivão de abra-mão-do-controle que a Vida oferece (ou pelo menos que a minha me ofereceu).

Foto @praflorescer

Com o nascimento do Bernardo, apesar do punk-rock que é a descoberta da realidade do puerpério, do maternar, do reinventar a si mesma, a relação, a vida, tudo, eu tive mais certeza de que, sim, queria ser mãe de novo. 

Porque ser fábrica de gente, com todos os desconfortos e desafios que isso traz, foi pra mim uma experiência gostosa, que me deu sensações que me levam a chamá-la até de milagrosa. Afinal, duas células viram uma, que viram um punhado, que, literalmente sabe Deus como (mecanismo exato a ciência não descreve), viram uma mini pessoa de 3 kg, dentro de outra pessoa. Isso é encantador.

Porque parir, minha gente… Ah… parir é bom! É bom que dói!

“Amor se fazer é tão prazer que é como se fosse dor” (Redescobrir, Gonzaguinha)

Porque sonhava que, talvez, poderia experimentar todas essas vivências com mais leveza numa segunda viagem…

Porque ser mãe me colocou ainda mais em contato com a finitude dessa versão de vida (ou com medinho dessa certeza: haverá um fim) e deixar algum tipo de continuidade e companhia ou referência parece fazer sentido…

Porque eu conheço bem o valor de ter um Irmão.

Porque a capacidade e a qualidade de amor que a maternidade me apresentou é realmente algo de outro mundo. Como cabe isso tudo dentro do coração?

Bebê número 4

Depois do Bernardo, antes da Letícia, meu ventre recebeu duas breves visitas. 

Por duas vezes, com intervalos de alguns meses, fomos da celebração ao luto em poucas semanas. Um luto doído até o fundo da alma. 

“Meu filho/minha filha, você não chegou a ter nome, mas é incluído/incluída; você faz parte. Será lembrado/lembrada. Que seu caminho seja de luz e amor onde estiver. Agradecemos pelo tempo que esteve aqui.” Foi o possível nas duas vezes quase idênticas: resgatar o saco gestacional entre coágulos, enterrar no pé de um ipê amarelo, dizer essas coisas, chorar…

Uns dias depois, verti meu sangue na terra. “Todo ciclo, eu venho aqui e honro meu sangue de vida, de fertilidade. Hoje honro esse sangue de dor.” Foi o que minha intuição me orientou fazer. E um tipo de alívio pro coração foi o resultado, como se essa terra, que tudo transforma, tivesse entendido minha necessidade naquele momento. 

E aqui uma pausa para reconhecer os mistérios e os poderes de habitar um corpo mulher, que é assim atravessado pela Vida e pela Morte, e segue adiante…

E sigo aqui refletindo e percebendo aprendizados que ainda não sei até onde ou quando vão reverberar… Algo sobre observar e respeitar meus próprios limites…

Agradeço.

Foto @praflorescer

♡ Gestação de 18 meses 

A notícia então da 4ª gestação veio com alegria e, claro, medo. Celebração contida, vivemos um dia de cada vez. Foi como conseguimos lidar, após termos passado por dois abortos…

“Tão cedo e tanto mal-estar? Que isso, gente?” Parecia um recado: “Estou aqui, está tudo certo. E você precisa de pausas.” Ou eu parava um pouco por alguns minutos, ou eu caía… rs…

O primeiro trimestre durou 6 meses. Passei por bastante náusea, tontura, sei lá; precisei repetir o ultrassom inicial porque o medo estava me dominando; terminava de atender as mulheres, deitava na maca e ficava tentando ouvir o coraçãozinho dela sozinha… tipo com 10 semanas… missão quase impossível, para a qual, claro, pedia ajuda. 

“Renata me chamando no consultório? O que será que aconteceu?” 

Finzinho do 1º tri, coração foi sossegando…

“Uma ótima ideia do Papai do Céu!” Foi a resposta do Bernardo após perguntarmos o que ele tinha achado da novidade, quando, enfim, havia chegado o momento de espalhar a notícia da chegada da irmã. 🥰

Segundo e terceiro trimestre duraram 12 meses, tal a densidade de acontecimentos. Posso dizer que nunca vi acontecer tanta coisa em tão pouco tempo…

E ainda havia uma Lilith e outros aspectos na revolução solar que me alertavam: se engravidasse esse ano (de maio/21 a maio/22), a gestação precisaria ser tranquila, sem sobressaltos. Ô, loko. Eu via os sobressaltos olímpicos ornamentais acontecendo em minha volta e focava (ou tentava focar) em manter o ambiente interno o mais sereno que conseguia. E eu fazia o que estava ao meu alcance para manter a saúde física, mental, espiritual. Boa alimentação, acompanhamento nutricional, atividade física quase todo dia, drenagem (mimo que taurina gosta), terapias (sim, no plural). E meu eixo ficou ali, em relativo equilíbrio. 

A tempestade lá fora, tudo pelos ares e, aqui dentro, menininha crescendo, eu alimentava voluntariamente uma certeza: “Filha, vem. Você é tão esperada e bem-vinda! Posso não saber como, mas sei que tudo vai dar certo. Nunca fiquei na mão e não vai ser com você aí que isso vai acontecer.”

As mulheres com os casos mais desafiadores da minha carreira médica…

Despedidas e ciclos se encerrando…

O bucho crescia, ela mexia, o morfológico de 2° trimestre veio normal… ufa… 

Mas, sim, achei que ia sucumbir. E foi quase! Algumas vezes. Sou só de carne e osso, bem comum, sem superpoderes.

Só que eu disse que não ia ser deixada na mão, né? Não se vence empreitadas assim sem companhia. Boas companhias. 

Eu as tenho. Agradeço e agradecerei para sempre a elas e por elas, que se fizeram presentes aqui, palpáveis, e em outros planos e dimensões. 🙏

Fui resgatada, acolhida, abraçada, cuidada, acarinhada, mimada, ouvida…

Tinha que sobrar um pouquinho pra gestante, pra “Renata Reis” ser só uma gestante…

Teve pinturas de barriga, fotos, presentes e até um Chá de Bênçãos surpresa com escalda pés e recadinhos de amor… 💜

Ainda fico aqui me perguntando de onde vem merecimento pra tanto…

E a mesma vida que é forja e esquenta, estica, aperta, molda, é também brisa, que refresca, renova, abraça, acalenta.

Desfrutar das duas.

Com a mesma aceitação. 

Será assim que a gente se ilumina?

O parto

Não se sabe nada. Quando ou como. Intensivão de não-controle.

Faz um bom pré-natal, tem a equipe dos sonhos, planeja parir no lugar dos seus sonhos, aquele que ajudou a materializar, garante rede de apoio pro pequeno, deixa mala pronta… e é isso. Mais não dá.

[A Equipe dos Sonhos, nesse caso, são as enfermeiras obstetras cuidando de mulheres saudáveis e bebês saudáveis e a equipe médica na retaguarda, de sobreaviso, caso seja necessário ir pro hospital.]

Eu até intuía/via/sentia/sabia que o parto aconteceria com dia claro, num dia tranquilo. Ficava imaginando que seria final de semana, mas foi num feriado e só assim, depois, é que se tem alguma confirmação…

E é boa essa sensação, viu? De estar à mercê e a serviço da Vida, sem sequer encostar no leme do barco, integralmente disponível, disposta pro que der e vier…

Parece que há algo especial e um propósito em ser assim pequena diante dos Desígnios… sei lá… um reconhecer que não há medicina, ciência, obstetrícia de ponta que desvende o enigma: quando vai entrar em trabalho de parto? Acho bom. Faz eu me lembrar dos limites do meu saber e me render à Sabedoria.

Foi apenas um dia antes que aceitei que precisava me desligar um pouco das histórias todas que eu-médica estava acompanhando. Precisava e merecia me concentrar na minha própria, ficar profunda e verdadeiramente feliz pela (expectativa da) chegada da minha filha. Precisava ser só da minha família por um tempo. E assim fiz.

No dia seguinte, quase amanhecendo, levantei pro já tradicional xixi da alvorada, e percebi aquelas cólicas indo e vindo, já com algum indício de ritmo, mas com intervalos longos entre elas.

Voltei pra cama. A lei dos pródromos e da fase latente é essa: priorizar descanso. Letícia mexia bem, então, tudo bem! Não há necessidade de monitorização, de ausculta regular dos batimentos cardíacos fetais nessa fase…

Meninos acordaram, Bernardo veio ficar comigo, falei pro Diego que parecia que as contrações estavam querendo chegar… Ele foi preparar o café da manhã… Por volta das 9h, disse pra ele: “é melhor acelerar as coisas, quero tomar um banho, lavar o cabelo…” Em oração, dei-me rosas brancas, da cabeça aos pés…

Avisei à equipe que parecia que algo estava querendo acontecer e segui.

E tô escrevendo assim (parecia, parecia…) porque é assim: da segunda vez, demora mais a acreditar que tá rolando. Da primeira, a gente fala assim pras mulheres: precisamos de contrações com ritmo E intensidade. Da segunda, ritmo OU intensidade. Mas até acreditar na intensidade ou ter o tal do ritmo, parece mais enrolado… heheheh

Mas eu estava fazendo as coisas, falava durante as contrações, que estavam leves, comprei roupa on line pro Bernardo (era uma promoção imperdível! hihi)

Marcava os intervalos no aplicativo e eram longos e irregulares… então fiquei quieta, procurando descansar…

Na hora do almoço, falei pro Diego sair com Bernardo – parecia que tudo ainda ia looooonge… 

Eram 13h10, Iara mandou mensagem perguntando como estava… respondi: “Tô trucando. Intervalos irregulares…” e ela respondeu: “Aquecendo os motores.”

Mas… dali a pouco, mudou tudo. Tinha chegado o ritmo consistente, eram 14h14. 

“Diego, volta logo.”

“Amiga, engrenou aqui.”

Quando Bernardo percebeu a contração, em meio a um pedido pra passear, com reposta negativa, eu disse:

“Filho, tá vendo? É uma onda de força.”

“Uma onda de força, mamãe? Minha irmã vai nascer????”

“Vai.”

Não sei descrever quão lindo foi seu sorriso, quanto brilharam seus olhos, quão gostoso foi o abraço que ele me deu. Ele sabia o que significava, lemos algumas vezes o livro da Naoli Vinaver sobre a chegada de um irmão…

Chegamos à Luz às 14h50 – 4 contrações leves em 10 minutos.

Logo depois, meu irmão chegou (rede de apoio pro pequeno) e levou Bernardo pra tomar sorvete. Queríamos a participação do pequeno, mas de forma que lhe fosse confortável, conforme ele demonstrasse interesse e vontade de estar na cena do parto… Logo voltaram e ele escolheu ficar na sala de estar com seu Dindinho, enquanto estávamos no quarto Ipê (a Luz é casa, né?).

Eu percebia, aos poucos, a progressão, o aumento da intensidade das contrações, que eu recebia sem medo. Desde as primeiras, internamente, eu dizia: 

“Vem, filha!”. Tanto tempo esperando e desejando isso, né?

Já mais pra frente, teve uma pressa também, como bem lembrou Marília: “Dilata loooooogo, por favor!!!” – escondida aí, além do “pelamor, tá doendo demais”, era a experiência do primeiro parto, em que as fases são mais sequenciais ou organizadas: dilata => desce => empurra.

Só que, nas experiências seguintes, não costuma ter muito isso… é tudo-junto-e-misturado-aqui-agora.

Dilata

Desce

Empurra

Sobrepostos.

Depois do parto, eu estava meio rouca. Gritei um monte. Achei bom. Se você aí fechar os olhos e tensionar a mandíbula, a língua, a garganta, e prestar atenção no períneo, vai perceber que que ele responde com tensão; se relaxar, abrir a boca, soltar um som, vai perceber que o períneo acompanha…

Eu sentia mãos em mim… do Diego, da Iara, da Marília, da Esther (meu companheiro e as enfermeiras)… e as minhas mãos apertavam seus corpos, buscavam e recebiam amparo, força apoio, calor, contato, presença.

Ofereceram a imersão na banheira como recurso para lidar com aquela intensidade toda, mas eu olhava pra banheira (linda e convidativa) e pensava que nela eu ficaria sozinha – “Como ele e elas vão encostar em mim se eu entrar ali?”

Dispensei a oportunidade de usufruir da banheira, gente! rs

Estar presente na travessia de uma mulher e no nascimento de um bebê dá poderes, honras e responsabilidades. Se você está ali, verdadeiramente presente, será transformada/o e cuidará de cada ato e cada palavra.

E lembrar de como o amor da minha vida e minhas amigas-parteiras-parceiras estiveram ao meu lado, sabendo pelo menos um pouco das travessias de cada um/uma ali, quase percebendo de novo a sensação de seus toques em mim, faz meus olhos marejarem e meu coração já sentir saudade de parir… 

Teve açaí dado na boca, água de canudinho, massagem na lombar, meu peso praticamente todo segurado pra conseguir me levantar e mudar de posição.

Em determinado momento, quis fazer xixi e fomos pro banheiro. Sentadinha lá, contração, xixi, contração, poc-cachoeira, contração, risos.

Isso, minha bolsa, muito organizadamente (como disse Iara), rompeu no vaso sanitário – zero lambança… hehehe… eram 15h45.

E, depois da contração de depois, eu ri gostoso – que sensação engraçada essa de não saber se senti ou se ouvi o “poc” da bolsa estourar e a cachoeira descer… e, antes do “poc”, vulva e vagina meio que sentem um inchaço… achei gostoso – foi inédito, já que, no parto do Bernardo, a bolsa foi adequada e amorosamente rompida de forma artificial.

Na sequência que o “bicho pegou” de verdade. Vi saindo o sanguinho do colo dilatando, tampão aos montes, contrações super intensas e próximas, alta partolândia (o estado de consciência bem diferente provocado pelo desligamento do cérebro racional e ativação do instintivo)…

Ainda ouvi o Bernardo chamando mamãe – olhou da porta e voltou pra ficar com meu irmão.

Eu estava na banqueta e percebi que tudo (as posições das pessoas) estava organizado para que Diego fosse a primeira pessoa a receber a filha.

Quando comecei ter puxo (empurrar institivamente, sem pensar), duvidei que era o expulsivo, pois, naquela sobreposição de eventos, eu ainda sentia a dor da dilatação junto. 

“Gente, vocês têm certeza que é expulsivo?!?!?! Ela tá vindo mesmo???”

“É. Toca pra você sentir.”

Toquei.

“Tá alta pra c@r@l#o.” – eu falo palavrão, gente. Um bocado.

Era 16h30.

Instantes depois, senti o períneo queimar – o círculo de fogo. Na hora, pensei: “faz muito sentido pedir gelo aqui.” Eu fiz isso no parto do Bernardo – pedi gelo pro períneo quando ele estava coroando. E rimos bastante disso depois. Porque faz parte queimar; é preciso também acolher essa sensação, acolher o calor – Deixar abrir, deixar passar, devagarinho…

De olhos bem fechados, eu via o processo. Era o próprio círculo de fogo que me informava a dose da força que eu fazia. E as meninas me lembravam de só respirar também, sem empurrar, em alguns momentos. 

E Letícia veio tão suavemente, pedacinho por pedacinho…

Diego disse que, de repente, sentiu aquela barriguinha quente e melecada na sua mão. As meninas dizem que ele ficou es(x)tático – até que alguém o lembrou que precisava passar a pequena pra mim, pro meu colo.

[para saber um tiquinho da parte engraçada, vá para “considerações”]

Se tem uma coisa que peço à Deusa é isso: que jamais se apague da minha memória a temperatura das minhas crias saindo de mim e encostando na minha pele. A temperatura e o cheiro de céu que têm. A temperatura, o cheiro de céu que têm e a enorme emoção que tomou conta do meu ser inteiro.

“Oi, filha! Bem-vinda!!! Você foi tão esperada!…

Traz o Bernardo!”

Acho que foi isso que falei… 

Bernardo foi chegando aos poucos…

Vi a cara de espanto do meu irmão ao me ver da porta, com Letícia nos braços e um sorriso largo no rosto, depois de ter ouvido os gritos que as paredes e portas acústicas custaram a segurar…

Diego voltou pra perto de mim. Beijos, abraços, contemplação… Alegria! Gratidão!!!

Letícia nasceu sob a luz clara de um dia tranquilo, às 16h33, do feriado de 16/06, com 39 semanas e 5 dias, pesando 3805g, medindo 51 cm!

Você precisa chegar à parte das “considerações” para ter alguns outros detalhes técnicos sobre tudo. ;o)

Ali no quarto, já na cama, fizemos muita festa, Simone e Bárbara chegaram, ganhei presente das meninas (!), Diego cortou o cordão (ia ser o Bernardo, mas, na hora, ele desistiu), tia Iara, vestidora de primeiras roupas, vestiu Letícia com a ajuda do irmão… (claro, depois da hora dourada, do contato pele a pele comigo prolongado, da primeira mamada…)

Bernardo se divertiu horrores na banheira que tinha ficado lá, pronta e abandonada, e me fez sentir que valeu o investimento… hahahahahah

Poucas horas depois, já estávamos em casa! Aprendendo a sermos mãe e pai de duas crianças, surfando nessa nova onda de amor. 

Sim, em casa horas depois, tipo a princesa Kate. E recebemos cuidado das enfermeiras em casa mesmo nos dias seguintes. Delícia!

Ainda estou aqui embriagada… de amor, de alegria, de ocitocina e, nessa altura do campeonato, de sono também… hehe

Sei que parir revela uma Renata desconhecida até então, faz renascer uma mulher, um companheiro, uma família.

Do ventre, pode brotar toda e qualquer criação e daqui aguardo para saber o que virá após Letícia. Porque a sensação de que “eu posso toda e qualquer coisa depois disso”, posso afirmar, não é só uma sensação, é uma realidade.

Desfrutar do florescer dessas sementes potentes de Amor é o que espero…

Seguir escolhendo e cultivando boas companhias, pessoas da vida toda também…

Aprimorar o desfrute da Vida, seja forja ou brisa…

Agradecer para sempre!…

Considerações 

– Sabemos (ou deveríamos) que é direito humano decidir livremente sobre sua vida reprodutiva. Se eu quero ter filhos, quando, quantas vezes, com que intervalo…

Profissionais apoiamos e, se preciso, subsidiamos escolhas com informações de qualidade, sem julgamentos. Nesse contexto, vale também falar o óbvio: problema nenhum em decidir não ter filhos, ou não se encantar com o processo, ou ter filho único (que não, não vai ter problema por causa desse fato isolado). Cada pessoa sabe de si. Só isso… Não precisa ser mãe/pai ou ter irmão/ã/s para ser uma pessoa ou ter uma vida feliz/legal/completa.

– Aborto é um evento comum na vida das mulheres. Seja espontâneo após gestação desejada; seja uma interrupção voluntária… De novo, não julgamos, evitamos pré-conceitos e frases prontas… o que cabe é acolhimento e cuidado apenas.

– Eu não sou corajosa nem guerreira nem coitada nem sofredora.

Sou tão somente uma mulher que tem consciência: da competência que é minha de nascença (gestar e parir); dos benefícios e prazeres de um parto normal pra mim e pra minha cria; da realidade obstétrica do país. E é essa consciência que me dá condições de construir esse relato, o do parto do Bernardo e de contribuir com outros tantos relatos de outras mulheres. Salve! Espalhemos informações, gente. 

– Não, eu não tive médica/o obstetra nem pediatra cuidando da gente no parto e no nascimento. Eu saudável, gestação saudável, Letícia saudável – todas a condições preenchidas para recebermos o cuidado das enfermeiras obstetras, conforme sugerem recomendações científicas que mostram que, nesse modelo de cuidado, a segurança é equivalente e a satisfação das mulheres com a experiência, maior.

– Uma gestação de 9 meses completos vai de 37 semanas a 42 semanas de idade gestacional.

A “Data (im)Provável do Parto – DPP” é calculada pra 40 semanas. Improvável porque, num intervalo de 5 semanas possíveis, a chance de parir exatamente da DPP é pequena.

Conselho de sempre: não conte sua DPP – diga o mês, a quinzena. Pra quando é o bebê? Pra julho. Pra quando de julho? Segunda quinzena – esticando pra 42 semanas. Com quantos “meses” você está? Quase 9 – mesmo que já esteja com 37 semanas ou mais.

Por que isso? Porque vivemos ainda numa cultura de medo do parto, de normalização da cesariana. A geração das mães das mulheres que estão parindo agora foi submetida à cirurgia cesariana em grande parte.

“Ah, mas você está falando pra mentir.”

Eu não chamaria de mentira, mas de preservação de um direito, da privacidade. Parto é um evento da sexualidade – você não sai contando por aí quando teve ou vai ter relações sexuais, sai?

E, mesmo que você chame, vai, de “mentirinha”, proponho uma balança: de um lado a verdade absoluta; de outro, a paz e a tranquilidade – qual pesa mais?

– Letícia pesou 3805g. Bernardo pesou 3540g. Eu não sou coitada nem guerreira nem corajosa nem sofredora. Sou competente de nascença. A bacia amplia seus diâmetros durante o trabalho de parto; a cabecinha do bebê, reduz seus diâmetros (pra isso existem as “moleiras”) e se molda ao canal de parto.

Num trabalho de parto e num expulsivo bem conduzidos, com respeito aos tempos da dupla (mulher e bebê), à fisiologia e com assistência baseada no que dizem as evidências científicas, são 3 as grandes chances: 1. Períneo íntegro; 2. Laceração de 1º grau (não atinge músculo); 3. Laceração de 2º grau (atinge parte do músculo). Essas lacerações são menores e cicatrizam melhor do que as corte (episiotomia), que não é necessário. Lacerações graves, de 3º e 4º graus, são realmente raras nesse contexto.

– Eu tive períneo íntegro nos dois partos. Ter laceração não é derrota ou falha, assim como não são derrotas ou falhas intervenções ou cesarianas necessárias. Cicatrizes fazem parte – mesmo que não ocorram no corpo, com certeza, acontecerão na alma. E te deixarão mais bela e forte, a depender do sentido com que as preencha. É impossível ser portal e colocar alguém do lado de cá da vida – exclusividade de corpos femininos – e continuar igual ou “voltar ao que era antes”. Muda definitivamente – se para melhor ou não, depende de vários fatores – mas que muda, muda.

– Puerpério, na minha opinião, é um dos períodos de maior vulnerabilidade na vida de uma mulher. Ilusão que dura só 40 dias… esse tempo é subjetivo, elástico… Da primeira vez, só me senti menos puérpera com o desmame… como se só assim tivesse sido possível retomar a mim mesma, meu corpo, meu limite, antes dissolvido nessa doação do aleitamento. Veremos como será dessa vez… Mas ainda quero escrever sobre uma “teoria do puerpério infinito”, inventar mais fases ou subdivisões pra ele… Virou mãe, não desvira. Como já disse, a gente se reinventa, diferente, não necessariamente melhor, nem pior, definitivamente diferente… Sinto saudade de algumas, talvez muitas, coisas de antes… Mas curto e honro várias outras coisas que surgiram com a maternidade…

– Parto normal é um “evento raiz”, por assim dizer. Sangue, suor, lágrimas, líquido amniótico, tampão mucoso, vérnix… cocô… (de gente grande, não só mecônio, embora também). Diego percebeu isso… hahahahaha… mas não vou contar não. Porque não vai ficar tão engraçado escrevendo, porque a experiência foi dele, porque é demais pra mim! Hehehehe

Mas parteiras comemoramos muitas coisas meio estranhas durante um trabalho de parto. “Oba, um cocô!!!!!!”

– Porque “quase”? [O Relato de (quase) tudo]

Porque há os arquivos protegidos do coração, há o que meus olhos, meus abraços e minha boca registraram ou disseram em segredo para mim, para meu companheiro, para minhas amigas-parteiras.

Há o que eu ainda nem sei ou descobri ou elaborei…

Agradeço!

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