Foi forte! Parir duas vidas me revirou. Escancarou meus sarcófagos. Me encarou frente a frente com esse emaranhado de raízes da qual brotei. Tudo aquilo que fez a improvável mistura do Maranhão com Uruguai gerar o México estava ali. Revolveu minhas águas mais profundas e desafiou minha própria natureza geradora. Me fez Isis, Hator, Afrodite, Iemanjá e Oxum. Foi música, no ventre duas danças.
Nosso parto gemelar foi humanizado, sem anestesia, com uma indução precisa até o momento da minha ocitocina reinar e orquestrar sozinha a chegada da nossa Carmen, do nosso Tom. Nossa preparação teve amor, muita busca, respeito às vidas e inseguranças também. Porque parir é uma construção. Um ato feito de atos. Um work in progress. E sim, também tive medo.
Era o oitavo dia do mês de abril de 2015, quarta-feira. Ali naquele momento a vida me brindava uma década de maternidade daquele que me transformou para sempre. Mathias, meu menino sorriso, primeiro filho que completava 10 anos! Também era dia de consulta com a Dr. Renata Reis. Lá na maternidade Brasília vimos que de fato uma das bolsas havia rompido. Imaginamos pelo fluxo pequeno e contínuo que era a bolsa do Tom que estava em cima. Estávamos construindo a possibilidade de um parto domiciliar, com as nossas magas parteiras Iara Silveira e Ana Cyntia Baraldi. Com uma das bolsas rota a orientação era esperar que eu entrasse em trabalho de parto naturalmente.
A ousadia foi nossa palavra mestra do dia 8 [quarta] ao dia 12 [domingo] de abril, quando nossos gêmeos chegaram. Já havia lido muito sobre a medicina baseada em evidências, mas viver cada decisão tomada coletivamente me banhou de confiança e consciência. Minha equipe deliberava em conjunto. Nada era decidido de forma unilateral por parte da obstetra ou das parteiras. Assim a literatura da medicina diz que quando uma bolsa se rompe é necessário que se “tire” o bebê da barriga em até 18 horas para que ele não entre em sofrimento, sem a proteção da água. Foram mais de 60 horas de bolsa rota. A orientação era acompanhar os batimentos e sinais vitais dos bebês e perceber se havia algum sinal de infecção em mim, como febre. Fui orientada também a beber muita água, uma vez que ajudaria a própria água da placenta se repor. Para nossa surpresa não entrei em trabalho de parto. Então esperamos até nosso deadline combinado que era a madrugada de sexta para sábado. Quando amanheceu 11 de abril e vi que tínhamos que de fato ir para a Maternidade Brasília confesso que me deu um frio na barriga. Não queria terminar um processo absolutamente lindo de pré-natal humanizado que havia iniciado com o entendimento de que o parto sim era um ato da sexualidade, numa cama de cesariana.
Eram oito horas da manhã quando meu amor e eu entramos na Maternidade Brasilia. Nossa médica Renata Reis já estava lá. A partir daí não sabíamos o que viria depois. Na mala que levamos tudo pronto para a chegada da Carmen e do Tom e nossa bola de pilates azul, nossas músicas e no meu braço direito uma pulseira da pedra malaquita que me acompanhou o tempo inteiro e havia sido abençoada pelas amigas, mulheres da minha vida no ritual de benção da barriga que havíamos feito! Subimos pro quarto e a indução começou às 10hs com remédio via vaginal chamado misoprostol. Logo na sequência a Renata que também é acupunturista fez uma eletroacupuntura nos pontos que estimulam o parto. Nada aconteceu. Rindo eu dizia ah acho que estou sentindo umas contrações. E ela respondia: sorrindo assim? Não… isso não é contração de verdade. Revisitamos a vida em conversas. Passamos o dia andando pelos corredores do primeiro andar da Maternidade, subindo e descendo inúmeras vezes as escadarias. Acompanhados da Trupe Chá de Boldo, Los Destrellos, Los Mirlos, Tom Zé, Bestie Boys, Sistema Criolina, Anelis Assumpção, Aldo Sena, Los Silvertones, Metá Metá e Marinho da Vila. E sim eu sentia que colocar o corpo em movimento era o melhor que podia fazer. Mas o tempo passava e nada. Nenhum sinal. Bebia água, andava e dá-lhe agachamentos! Já eram 18hs e o efeito do misoprostol já havia passado (ele fica seis horas no corpo) e nada. Decidimos fazer novamente outra sessão de eletroacupuntura. Nossas parteiras chegaram às 19hs pra completar nosso time dos sonhos! Depois de confabularem as três, Renata, Iara e Ana Cyntia me chamaram e falaram “Mica vamos partir pra ocitocina”. Frio na barriga, aliás… gelo na barriga. Como a confiança era total sabia que era o melhor a ser feito naquele momento, mas com todas os relatos sobre a ocitocina sintética confesso que tinha um pouco de medo do que viria.
Começamos com um gotejamento de 8 por minuto. Um tempo depois o próximo passo: Renata furou a bolsa de vez. Chegamos até 24 gotas por minuto quando o relógio bateu 22:30. De repente tudo começou! Foram três horas com ocitocina sintética e de sentir nada passei a ter contrações de dois em dois minutos. Chegou a hora, Mica! Vamos descer para sala de parto humanizado. No caminho até lá parávamos a cada dois minutos e só as massagens do meu amor na lombar me acalmavam. Chegando lá elas retiraram a ocitocina sintética e em cinco minutos minha própria ocitocina reinou sozinha. Das seis, sete horas que ficamos dentro da sala de parto humanizado tenho alguns flashes na memória e muitas sensações que me tatuaram a alma. A dor do parto é muito difícil de ser descrita. Sentia que meu corpo naquele momento era um instrumento. Minha bacia, a mãe terra. Para a vida brotar precisava abrir. Abrir e alargar. Minha lombar parecia que ia rachar ao meio. Na sala primeiro me apoiei nas barras horizontais e só me lembro nesse momento das mãos milagrosas da Ana Cyntia que me apertava forte na contração dos dois lados do quadril ao mesmo tempo. Como se fosse comprimir o que estava se abrindo. A partir dali quis ficar dentro da água. Não tenho muita noção de tempo, nem mesmo da sequência do furacão que veio depois. Mas fiquei um período longo lá dentro. O Barata, meu amor, já estava super orientado à massagear forte minha lombar, com mãos e coração presentes. Dali fiquei quase todo tempo dentro da banheira. De olhos fechados para o externo só conseguia olhar e sentir o que estava dentro. Sentia minha menina descendo e fazendo seus movimentos precisos rumo à vida. E haja dor! A água morna era um calmante. As meninas a principio acreditavam que a Carmen iria nascer na água, mas ela estava demorando demais. Havia algo ali! Foi quando me pediram pra sair da água para me examinarem. Na maca confirmaram que a Carmen estava cefálica, mas olhando pra cima. O que dificultava e fazia mais dolorida sua descida. E o Tom pélvico. Elas então juntas fizeram algumas manobras de spinning baby com alguns movimentos de agachamento e sempre apertando meu quadril. Ainda na maca a Renata fez uma acupuntura sangria nos dois dedinhos mindinhos do pé, naquele ponto que o bebê vira. Foram magas!!! Dali não me deixaram mais ir pra água. Disseram que o banquinho de parto era o mais adequado. Sentada naquele banco azul empurrei o mundo. Meu amor sentou atrás de mim e me apoiou literalmente. Era tanta a dor que pedi pra desistir algumas vezes. Não gente, não quero mais isso!”, eu dizia. Só me lembro das sábias palavras da Iara, sem recordar nada que ela disse. Mas sei que aquelas palavras retumbaram em mim e me deram força, muita força pra seguir empurrando. E claro a gente empurra tanto que sai até cocô. A descida no canal vaginal até o bebê coroar é muito, muito doída. E uma ardência muito grande. Mas ela já estava ali! Mais uma empurrada, uma dor gigante até a cabeça sair. Porque depois da cabeça o corpo escorrega como um quiabo. Mesmo! E na primeira hora daquele domingo nossa Carmen chegou! Emoção indescritível! Logo ela veio pro meu colo e naquele transe eu ainda tinha outro parto pela frente.
Tinha escutado de muita gente que depois que o primeiro nascia o segundo vinha minutos depois. Mas com a gente não foi bem assim. Voltei pra maca para examinarmos a posição do Tom. E não é que ele tinha virado! Ah minhas meninas super poderosas não brincavam em serviço não. As manobras e aquela sangria fizeram nosso menino mergulhar pra vida de cabeça. Sim, ele vinha cefálico! Mas assim como nossa Carmen ele também estava olhando pra cima. Na maca as contrações voltaram com força total. Eu só queria saber da banheira. Nada mais me acalmava. Eu já estava esgotada. Muito cansada. O trabalho de parto do Tom foi muito dolorido e o transe mais profundo. Ele era maior que ela. Não sei quanto tempo fiquei na banheira e não me lembro em que momento voltei para o banquinho azul. Mas ali sentada eu era bicho. Já não ouvia nada e quando abria os olhos não via nada. Éramos nós dois ali. Ele e eu acompanhados da minha força e do seu esforço para nascer. As meninas tentaram posicionar um espelho para que eu visse ele coroando, mas não, eu não queria ver nada. Então o espelho ficou ali posicionado pro meu amor ver nosso filho chegar, longe da minha visão. Só percebia que as meninas e meu amor se comunicavam por olhares e gestos. E sim havia muito intimidade ali. Um respeito gigante ao som que vinha do meu corpo, da minha mãe terra. Até o Tom coroar foi tudo muito intenso. Eu estava entregue àquela força que nem mesmo eu sabia da onde vinha. Meu corpo respondia instintivamente aos comandos do meu útero. Não abria os olhos. Soltei meu corpo sobre meu amor e apertava, apertava ele muito. E assim foi até o grito final! Duas horas e vinte seis minutos depois da Carmen, às 03:26 da manhã o Tom chegou, nosso Tom maior.
O que posso dizer é que nesse processo todo houve muito amor, confiança e respeito. As imagens do parto e do vídeo que acompanham esse relato me arrepiam da cabeça aos pés. Renata Reis, Iara Silveira, Ana Cyntia Baraldi Rodrigo Barata e eu, nós cinco saímos transformados dessa experiência. Carmen e Tom chegaram nos mostrando que é no coletivo que a vida se dá. A vida em rede. E eu só posso agradecer à minha ancestralidade latina-nordestina, às mulheres das linhagens da qual brotei que me permitiram dar à luz aos meus gêmeos com tanta força e porque não dizer coragem.