Nós, profissionais que cuidamos das mulheres durante a gestação, ouvimos com muita frequência as seguintes falas:
– Mas não precisa fazer ultrassom pra ver se está tudo bem?
– Estou com saudade de ver a carinha dele/dela…
– Quero fazer um 4D pra ter uma foto e ver com quem se parece.
Nesse papo, vamos aprofundar sobre o tema.
O que é o ultrassom?
O ultrassom é uma tecnologia que usa pulsos de ondas sonoras de alta frequência para produzir imagens e, como resultados adversos obstétricos podem ocorrer mesmo em situações sem fatores de risco claros, tem-se deduzido que a realização de ultrassonografias¹ de rotina é benéfica para as mulheres e seus bebês.
Mas será que é assim mesmo?
- Ultrassom, ultrassonografia e ecografia são a mesma coisa.
Existem efeitos prejudiciais do exame de ultrassom?
Até o momento, não foi identificado nenhum efeito prejudicial significativo em crianças expostas ao exame dentro do útero e também acompanhadas por vários anos após o nascimento.
As principais preocupações do uso do ultrassom são com relação aos efeitos térmicos e de cavitação² do tecido insonado.
O aumento de temperatura com ultrassom de diagnóstico gira em torno de 1°C e este nível de elevação não é considerado significativo. O ultrassom doppler utiliza mais energia, focada num volume de tecido muito menor e pode elevar a temperatura do tecido, especialmente em interfaces de tecido ósseo. Por esta razão, o doppler deve ser usado com cautela, especialmente no início da gravidez, apesar da ausência de calcificação óssea significativa neste momento. O ultrassom de diagnóstico usado para imagens médicas não parece causar cavitação nos exames obstétricos usuais.
Em 2009, a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou revisão sistemática de estudos que avaliavam a segurança do ultrassom com e sem doppler na gravidez humana. Nessa revisão, não foi encontrada associação entre o exame e resultados maternos/fetais/neonatais adversos, desenvolvimento físico ou neurológico prejudicado, risco aumentado de câncer maligno infantil, capacidade cognitiva prejudicada ou doença mental. Entretanto, os dados revisados possuíam limitações, pois os estudos eram observacionais e não tinham como objetivo principal a avaliação específica dos efeitos do uso dessa tecnologia. Além disso, a intensidade da exposição ao ultrassom geralmente não era medida, a tecnologia do ultrassom mudou durante o período em que esses estudos foram realizados e mudanças sutis e de longo prazo podem ter sido perdidas. De toda forma, as conclusões da revisão são tranquilizadoras.
- A cavitação é um efeito que normalmente ocorre na interface de tecidos e gás, provocada por efeitos mecânicos compressivos e descompressivos dos pulsos de ultrassom. Como não há gás no pulmão ou no intestino do feto, acredita-se que isso não seja um fator significativo no exame obstétrico nos níveis atualmente usados de ultrassonografia diagnóstica.
Como aumentar a segurança na realização de exames de ultrassom?
- A realização do exame deve estar reservada para situações em que há indicação ou necessidade clara;
- Os exames devem ser realizados com técnica adequada e ter duração otimizada.
Agora vamos às necessárias reflexões sobre esse tema:
Em primeiro lugar, de forma semelhante ao que vemos em outras áreas da obstetrícia e da medicina em geral, temos a hipervalorização dos recursos tecnológicos. O que precisamos lembrar, no entanto, é que quantidade de exame não significa qualidade de cuidado.
Exames complementares são exatamente isso: complementares à avaliação clínica e obstétrica, que inclui acolhimento e escuta qualificada, exame físico realizado. De maneira alguma substituem essas etapas do cuidado.
“Quem não sabe o que procura não entende o que acha” – é frase ouvida por estudantes de medicina. Ou seja: antes de solicitar qualquer exame complementar (laboratorial ou de imagem), é preciso que uma pergunta tenha sido respondida: qual meu objetivo com essa solicitação?
Sabemos que mulheres com gestação de baixo risco ou risco habitual (sem doenças/alterações prévias ou gestacionais que complicam a gravidez) não se beneficiam da realização de ultrassonografias seriadas ou de rotina.
Em outras palavras, grandes estudos científicos mostram que esses exames não mudam nem melhoram a evolução da gestação nem os resultados após parto e nascimento (tais como: mortalidade perinatal, parto prematuro, taxa de cesariana ou de indução de trabalho de parto).
Além disso, as evidências são insuficientes para concluir que a realização do exame teria algum efeito de redução na ansiedade materna ou de mudança nas suas práticas de cuidado da saúde.
Então, partimos para o segundo ponto:
Quais são as indicações da ecografia? Quando ela precisa ser realizada e trará benefício?
1. A avaliação fetal precoce, geralmente a partir de 6 a 7 semanas de idade gestacional, fornece informações importantes, tais como: se a gestação está dentro ou fora do útero; se a datação (contagem do tempo gestacional) está correta (isso evita induções desnecessárias por pós-datismo, por exemplo); se é uma gestação única ou gemelar (isso muda a condução pré-natal). Por essa razão, sua realização é benéfica (apesar de o desenho metodológico dos estudos revisados serem passíveis de vieses pela ausência de cegamento adequado).
2. O ultrassom chamado morfológico de 1º trimestre, mais conhecido por avaliar a “nuca do bebê” (realizado em torno de 12 semanas), tem a função de fazer uma avaliação do risco de o feto ter síndromes que se apresentam com um número a mais de cromossomos, como a Síndrome de Down. Não é um exame que fecha o diagnóstico, pois este só pode ser realizado por meio de exames mais invasivos durante a gestação (como a amniocentese e o cariótipo fetal) ou após o nascimento. Ou seja, vale refletir antes de decidir sobre realizar ou não a avaliação morfológica: o que eu vou fazer se o risco do meu bebê ter síndromes vier elevado e como isso vai impactar na minha saúde física/emocional, na vivência dessa gestação, na preparação para a chegada desse bebê? Por si só, uma avaliação aumentada de risco para aneuploidias (essas síndromes causadas por alterações no número de cromossomos) dificilmente muda como o seu pré-natal será conduzido e não há tratamento que modifique o possível diagnóstico. Sabendo disso, você precisa colocar na balança os prós e os contras de ter essa informação ou não para sua tomada de decisão sobre fazer ou não esse exame.
3. O exame Doppler das artérias uterinas no 1º trimestre pode trazer uma informação importante sobre o risco de a gestante desenvolver pré-eclâmpsia ou do bebê desenvolver restrição de crescimento intrauterino. Para manejar esse aumento de risco e melhorar os resultados obstétricos e perinatais, é possível a prescrição de suplemento de cálcio e de AAS (ácido acetilsalicílico). A literatura científica, no entanto, não estabelece benefício em realizar essa triagem para mulheres que não tem, em sua avaliação clínica, dados que sugiram que há alguma propensão a desenvolver essas alterações (como história prévia, pessoal ou familiar de pré-eclâmpsia, hipertensão crônica, doenças renais ou autoimunes, entre outros) ou que apresentem sintomas ou alterações no exame físico na gestação atual.
4. O exame que parece ser mais útil é o do segundo trimestre e há recomendações para que, se for possível realizar apenas uma ecografia durante a gestação que seja essa, em torno de 20 semanas. Nessa idade gestacional, a datação pela ecografia ainda é acurada e é possível a detecção de gestações múltiplas e anomalias fetais, além de realizar uma boa avaliação da placenta (localização, características de acretismo), do cordão umbilical e do tamanho do colo do útero (quando curto, pode significar aumento de risco de parto prematuro).
5. Pode haver benefício em fazer rastreamento de restrição de crescimento intrauterino no 3º trimestre de gestação para mulheres com fatores de risco. Já aquelas saudáveis, podem ser acompanhadas conforme cronograma de consultas e exame físico com avaliação do crescimento da altura uterina (ou altura de fundo uterino), que é uma boa avaliação da evolução normal da gravidez.
São só essas as indicações de fazer ultrassom?
Em gestações de baixo risco ou de risco habitual (isto é, sem complicações ou doenças afetando seu curso), são só essas as indicações de fazer ultrassom.
E o ultrassom para descobrir o sexo do bebê?
Ultrassom para saber o sexo geralmente é realizado a partir de 16 semanas, e não tem indicação obstétrica. Nós costumamos apelidá-lo de recreativo. Muitas famílias escolhem fazer esse exame sabendo de tudo o que conversamos acima e nós, claro, apoiamos sua decisão.
Ultrassom no terceiro trimestre para avaliar o peso do bebê é indicado?
Ultrassom no terceiro trimestre para avaliar peso fetal também não tem necessidade na ausência de suspeitas clínicas de alterações e a margem de erro do cálculo de peso pode chegar a 15% para mais ou para menos.
Pense que para um bebê com peso estimado em 3.000 g, isso pode significar que ele pode pesar de 2.550 g a 3.450 g – variação grande, né?
No modelo da Luz de Candeeiro, pelo menos um exame costuma ser solicitado no 3º trimestre, pois a equipe compreende que isso traz mais tranquilidade para todas as pessoas, especialmente num cenário de parto fora do hospital. Para saber mais sobre como cuidamos das mulheres, clique aqui.
Por fim, vamos ao terceiro ponto de reflexão: será que preciso fazer ultrassom todo mês pra garantir que está tudo bem?
Imagine o seguinte:
– Você, mulher, “de repente”, não recebe mais o seu sangue cíclico;
– Seu paladar muda, sua digestão muda, seus pensamentos estão em outro ritmo;
– Passa um pouco mais tempo e seu corpo muda muito! Seu ventre vai se enchendo, se expandido e, “de repente”, vibra, treme e até… chuta!
Há esse tanto de Vida pulsando dentro de você, numa raríssima relação de profunda e literal intimidade.
Onde foi que passamos a ser tão dependentes da tecnologia para ter informações sobre o que se passa em nosso íntimo?
Feche os olhos, amada. Repouse as mãos no ventre. Respire fundo. Silencie a mente. Dê voz ao coração.
Como estão as coisas por aí?
Confiar num modelo de cuidado cientificamente embasado e numa equipe competente para perceber, acolher e conduzir suspeitas de desvios da normalidade e, claro, as angústias que podem mesmo surgir nos corações, pode ser a melhor oportunidade para você se permitir abrir mão do controle e alimentar a conexão e o vínculo de forma nunca antes experimentada.
REFERÊNCIAS
- Shioo, TD. Overview of ultrasound examination in obstetrics and gynecology. Disponível em https://www.uptodate.com/contents/overview-of-ultrasound-examination-in-obstetrics-and-gynecology?search=ultrassom%20na%20gravidez&source=search_result&selectedTitle=1~150&usage_type=default&display_rank=1#H26. Acesso em 04 de maio de 2022.
- Bricker L, Medley N, Pratt JJ. Routine ultrasound in late pregnancy (after 24 weeks’ gestation). Cochrane Database of Systematic Reviews 2015, Issue 6. Art. No.: CD001451. DOI: 10.1002/14651858.CD001451.pub4. Acesso em 27 de abril 2022.
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- Torloni MR, Vedmedovska N, Merialdi M, Betrán AP, Allen T, González R, Platt LD; ISUOG-WHO Fetal Growth Study Group. Safety of ultrasonography in pregnancy: WHO systematic review of the literature and meta-analysis. Ultrasound Obstet Gynecol. 2009 May;33(5):599-608. doi: 10.1002/uog.6328. PMID: 19291813.
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- Dyvon, MY. Fetal growth restriction: Screening and diagnosis. Disponível em https://www.uptodate.com/contents/fetal-growth-restriction-screening-and-diagnosis?search=doppler%20da%20art%C3%A9ria%20uterina&source=search_result&selectedTitle=3~12&usage_type=default&display_rank=3#H30. Acesso em 04 de maio de 2022.
Nesse papo, vamos aprofundar sobre o tema.